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Cena do filme, dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, vencedor do Globo de Ouro |
“O Jardineiro Fiel” sob a ótica da ética kantiana
O filme dirigido pelo brasileiro
Fernando Meirelles (veja links abaixo) trabalha com um tema atual e abrangente: existe uma ética
nas relações entre empresas farmacêuticas e mercado consumidor? A partir de que
momento a ciência deixa de atender as necessidades humanas para satisfazer o
desejo de lucro das empresas? Qual a inferência das políticas públicas nessa
relação? A polêmica foi lançada..
Por outro lado, qual tem sido o
papel de ativistas nesse processo? É possível quantificar as interferências de
grupos ou de indivíduos nesse mesmo processo? E qual o resultado obtido por
esses grupos de indivíduos que em menor ou maior escala não somente denunciam
mas procuram interromper processos como o demonstrado no filme de Meirelles? Contudo,
o resultado da ação não é o que a torna ética, segundo Kant, mas o motivo, o que
deu motivação para a mesma.
Equacionar interesses privados
e/ou públicos com o respeito que se deva ter à vida humana, por meio da ética
tem sido a preocupação da Filosofia desde
Sócrates. No transcorrer do tempo vemos que no mais das vezes não há
conciliação possível quando os interesses mencionados se sobrepõem aos da
preservação e cuidados para com a vida. Haja vista as atuações de organizações
não-governamentais em outras áreas como Greenpeace, Mata Atlântica, Sou da Paz,
etc.
Em Kant essa mediação entre
sujeito-sociedade impõe uma relação moral onde o interesse individual seja
norteado pelo bem estar comum:
“A moral kantiana ameniza a importância do prazer,
do contentamento e da felicidade e institui a moral
dos deveres. Nesse enfoque, mais importante do que
a felicidade do indivíduo é agir por respeito ao dever,
conforme uma boa vontade. Kant não diz que não
tenhamos a obrigação e o direito de buscar e desejar a
felicidade. Porém, enfatiza com a sua moralidade que
devemos agir corretamente, independentemente do
fato de sermos felizes, ou não. Para tanto, o homem kantiano
busca transcender às inclinações, às paixões, às tendências,
aos impulsos ou aos desejos pessoais (homem transcendente),
para obedecer unicamente à lei moral, determinada pela
própria
razão – com base na boa vontade e no respeito ao dever
(homem transcendental). E, neste movimento, dá-se o encontro
com uma máxima capaz de orientá-lo na constituição
de sua própria moral: o imperativo categórico.” (UNISUL, LD
Ética Moderna)
Essa importância do prazer, do
contentamento e da felicidade mencionados estariam na relação direta com os
interesses de manutenção do lucro em primeiro lugar, e até em detrimento do bem
estar social. A retirada do mercado de produtos que satisfazem a necessidade de
manutenção da saúde dos indivíduos e a sua substituição por outros que não
atendam a esta necessidade mas que refletem um menor custo de fabricação; a troca
das embalagens e/ou dos nomes-fantasia
de produtos por outros com a tarja “novo” que não envolvem nenhuma mudança em
sua formulação, mas que chegam ao mercado consumidor com custo aumentado; a
alteração de fórmulas sem o conhecimento/aprovação de órgãos como ANVISA ou
correlatos em outros países; a propaganda excessiva de remédios pela mídia e
por unidades de distribuição com a mensagem subliminar “seja saudável e feliz desde que consuma tal medicamento” ou “você só pode ser saudável se consumir
este produto”, ou ainda “o artista tal também utiliza este remédio”, são
exemplos onde a prioridade é a plena satisfação individual e individualista de
interesses mesquinhos e egocentrados. Ou seja, os fins justificando os meios.
De forma alguma vemos aqui o homem
transcendente ou transcendental onde a relação com o outro se firma em bases de
boa vontade e de dever.
Conforme Barbara Freitag (FREITAG,
1992 apud UNISUL, LD, 2011): “As leis fixadas pela vontade legisladora do homem
racional orientam-se segundo duas categorias de valores: o preço e a dignidade
humana. O preço representa para Kant um valor exterior e a manifestação de
interesses particulares, ao passo que a dignidade representa um valor interior
de interesse geral. A legislação elaborada pela razão prática que visa ao
interesse de todos não pode ter como valor fundamental o preço, ser valor
fundamental de ser sim a dignidade humana.”
Segundo a autora, a “vontade
legisladora do homem racional” ou a autonomia segundo Kant deve ser conduzida
segundo a manter sim a sua individualidade porém nunca deixando à parte a
dignidade.
Na relação da ativista Tessa com o
problema por ela detectado na comunidade queniana, deu-se o seguinte (repetimos
aqui o trecho da LD/UNISUL):
“Porém, enfatiza com a
sua moralidade que
devemos agir corretamente, independentemente do
fato de sermos felizes, ou não. Para tanto, o homem kantiano
busca transcender às inclinações, às paixões, às tendências,
aos impulsos ou aos desejos pessoais (homem transcendente),
para obedecer unicamente à lei moral, determinada pela
própria
razão – com base na boa vontade e no respeito ao dever
(homem transcendental). E, neste movimento, dá-se o encontro
com uma máxima capaz de orientá-lo na constituição
de sua própria moral: o imperativo categórico.” (UNISUL, LD
Ética Moderna)
A personagem enquadrou-se
“categoricamente” na definição de homem transcendente, na medida em que “transcende”
o seu próprio bem estar individual, à própria limitação que lhe foi imposta
pelo fato de ser mulher e, num outro momento, grávida, em que se submete às
constrições de um parto em condições precárias com o intuito de “vivenciar” o
drama das mulheres africanas, muito embora esta necessidade de dever lhe tenha
custado a vida do próprio filho (aqui ela se enquadra na definição de homem
transcendental). A personagem ultrapassa a sua condição humana e num arroubo de
auto superação se atira num confronto gradativo e final contra o sistema.
Destaque-se aqui a metáfora
representada pelo marido de Tessa, o “jardineiro fiel”: aquele indivíduo que,
cumpridor de suas obrigações profissionais e domésticas, “cultivador” constante
de seus próprios valores, nunca interfere no “status-quo” no qual acredita e
põe fé, apesar das evidências contrárias. Somente quando cai em si dos valores
defendidos pela ativista, em seus reais significados e não como mecanismos de
fuga existenciais, reconhece nela uma transgressora dos interesses subalternos
da empresa farmacêutica, e que dá a própria vida em defesa das vítimas do
laboratório. Ele então assume a “missão” da ativista interrompida com a sua
morte, e completa a denúncia com a documentação comprobatória, morrendo por sua
vez, sob a própria vontade de morrer,
e nas mãos dos prováveis mesmos assassinos da mulher.
Profa. CARMELITA
SCHULZE
Bibliografia:
UNISUL-Ética Moderna, Livro Didático, 2011;
FREITAG, Barbara, Itinerários de Antígona, 1992 (texto da
Midiateca);
Filme “O Jardineiro Fiel”;
SONIA THEODORO DA SILVA.